A filosofia do tempo é um problema metafísico de grande porte, e ganhou destaque na filosofia contemporânea. Todavia, seria um equívoco de nossa parte creditar apenas à filosofia contemporânea o interesse pelo tempo. Este tema é tratado desde a filosofia antiga, e Agostinho de Hipona, também conhecido como Santo Agostinho, é um dos grandes pensadores que fez uma filosofia do tempo.
1. “Se não me perguntam, eu sei. Se me perguntam, eu não sei”.
Um dos textos mais importantes para o tratamento da questão é, certamente, o livro XI de seu livro “Confissões”. Bom escritor, Agostinho inicia a questão num tom brincalhão: “O que é o tempo? Se não me perguntam, eu sei. Se me perguntam, eu não sei”. A brincadeira faz ecoar a reflexão de um filósofo que viveu um pouco mais de um século antes de Agostinho, o famoso Plotino1.
Agostinho escreveu uma piada. Contudo, não é menos verdade que ela está recheada de conteúdo filosófico. Afinal, desde que nascemos temos alguma experiência de tempo, e em algum momento de nossa infância já temos internalizado o calendário. (Eu me lembro de uma colega do jardim de infância que se revoltou com a professora porque acreditava que seu aniversário era em junho — mas, na verdade, era em julho; por uma letra ela teve seu dia arruinado…). Por isso mesmo, supomos que saibamos o que é o tempo. No entanto, ao refletirmos mais profundamente a respeito de seus paradoxos, encontraremos uma série de equívocos, de modo que não sabemos exatamente o que ele é. A postura filosófica, aliás, é aquela que reflete sempre, que procura sempre os seus fundamentos, por isso algo que, num primeiro momento parece óbvio, depois se torna bastante complexo.
2. Entre o tempo e a eternidade.
Para elaborar sua reflexão, Agostinho parte de uma característica “básica” sobre o tempo: ele pode ser dividido em passado, presente e futuro. O que percebemos, desta divisão, é que o futuro não existe: ele ainda está por vir. O passado, no que lhe concerne, também não existe. Afinal, é aquilo que já passou — de algum modo já não existe mais. Resta-nos, então, o momento presente. É ele quem podemos experimentar em nossas vidas.
Com base nessa constatação, Agostinho se interroga sobre qual seria a diferença entre o presente e a eternidade. Afinal de contas, na eternidade não há um foi ou um será — tudo sempre é. O filósofo aproveita a reflexão para lembrar que, ao falar em Criação do mundo (Agostinho professava a fé cristã), é um equívoco dizer que “Deus realizava algo antes da Criação do mundo”, justamente porque na eternidade de Deus não há antes ou depois. Concluindo, então, que o presente não é a eternidade, Agostinho afirma que o presente, para efetuar-se como tal precisa ser uma passagem do futuro para o presente e do presente para o passado.
3. O tempo e suas divisões.
Agostinho continua sua reflexão, desta vez se interrogando sobre a divisibilidade do tempo. Isso porque passado, presente e futuro são categorias que se relacionam com várias unidades de tempo. Um exemplo simples: estou escrevendo este texto no mês de abril: tenho 8 meses de futuro até o fim do ano, e 3 meses de passado. Mas o mês de abril é o presente? Afinal, hoje é 28 de abril: já se passaram 117 dias desde o início do ano, e ainda faltam 247 até o seu encerramento. A pergunta, então, se refaz: o dia 28 de abril é o presente?
Podemos raciocinar a partir desta divisibilidade do tempo pelos dias, horas, minutos, segundos, e mesmo que chegássemos a uma partícula tão ínfima que pudéssemos denominar “presente”, essa partícula seria tão pequena que nós não a perceberíamos. Deste modo, esta partícula passaria tão rapidamente do futuro para o passado, que nem sequer a perceberíamos.
4. O conceito de duração.
Ora, se nem sequer conseguimos perceber o instante presente, como medimos o tempo? O hiponense responderá que o tempo existe na Duração. Tomemos como exemplo este próprio texto, ou até essa frase: as palavras que já se passaram fazem parte do passado. Não obstante, elas ainda permanecem em nós, através da nossa memória. Do mesmo modo, a expectativa torna possível o nosso acesso ao futuro. Ainda mais: esta reflexão vale não só para esse texto, mas para as ações humanas, para a vida inteira e para a história.
O que percebemos, portanto, é que Agostinho desloca a percepção do tempo do âmbito extra-mental para o mental. Agostinho advoga: “Em ti, minha mente, meço os tempos” (Conf. XI, 27, 36). Se trata de dizer que, para Agostinho, o tempo não existe fora das nossas mentes, como uma propriedade da natureza? Esta interpretação, que poderíamos chamar “subjetivismo forte”, não é necessariamente a sustentada por Agostinho. Pelo modo com que Agostinho fez a sua exposição, não me enxergo em condições de concluir que esta seja a posição do filósofo; afinal, é bem possível que Agostinho estivesse apenas destacando que a percepção que temos do tempo é dependente de funções do nosso próprio intelecto.
Notas:
[1] Os especialistas notam como Agostinho aproveitou muito de seu contato com a obra de Plotino; mas isso é um tema para outro post — por enquanto gostaria apenas de sinalizar que houve essa influência.
Referências:
AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Cia das Letras/Penguin, 2017.